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Comunicação com os “mortos”

Na conclusão de “O Livro dos Espíritos” [1], Allan Kardec anota que o Espiritismo se apresenta sob três aspectos: as manifestações dos Espíritos, os princípios filosóficos e a aplicação destes princípios. A mediunidade, portanto, é parte integrante dos estudos espíritas, tanto quanto as questões de cunho filosófico e moral.

A comunicação sistemática com os “mortos” (entre aspas, pois o que está morto não se comunica), a análise crítica de suas mensagens, a pesquisa sobre a natureza e mecanismos do fenômeno mediúnico e o método para suporte ao desenvolvimento da faculdade dos médiuns são temas essenciais no Espiritismo.

Ao dedicar-se com afinco ao estudo da mediunidade, trazendo-a para o campo dos fenômenos naturais, Allan Kardec busca remover todo o aspecto místico, mágico e religioso associado às manifestações dos Espíritos. Ao longo da história, estas manifestações sempre existiram, mas eram tratadas no campo do sobrenatural ou do sagrado.

Ao restringir e controlar o intercâmbio espiritual, reservando-o aos iniciados ou às castas sacerdotais, as religiões de todos os tempos e de todas as culturas contribuíram para o atraso do desenvolvimento espiritual no planeta. Em todas as épocas e em todos os países, os médiuns ou eram coaptados pela classe religiosa dominante, ou eram mortos, acusados de hereges, endemoniados, pervertidos ou coisas semelhantes.

Na tradição judaico-cristã os exemplos mais patentes são a proibição do intercâmbio no Antigo Testamento (vide, por exemplo, Levítico 20:6 e 20:27) e a perseguição dos inquisidores cristãos aos heréticos, muitos acusados de “bruxaria” e “necromancia” (predominantemente, mulheres).

Por isso, o trabalho de Kardec neste campo está longe de ser compreendido. Permitir e naturalizar a manifestação de Espíritos desencarnados é sempre considerado um risco. Por um lado, a ignorância faz com que a maioria das pessoas considerem os Espíritos como “seres superiores”, atribuindo-lhes uma autoridade que muitas vezes não possuem. Por outro lado, há dificuldades reais a serem enfrentadas (como os processos obsessivos [2]). E ainda precisamos considerar o papel dos médiuns neste processo, que recebem, por transferência, as mesmas qualidades atribuídas erroneamente aos Espíritos, mesmo quando não as possuem.

Todos estes problemas (e vários outros) têm causado um fenômeno estranho no movimento espírita. A mediunidade está sendo, mais uma vez, reduzida a um grupo pequeno de pessoas. É cada vez mais comum encontrarmos espíritas que nunca presenciaram uma comunicação mediúnica. Que nunca viram, pessoalmente, um médium “em ação”. Que nunca estiveram em uma reunião mediúnica. E, pior: nem querem estar; nem querem ver.

Ao mesmo tempo, uma profusão de “lives espíritas” na internet levanta dúvidas e questionamentos sobre o fenômeno mediúnico, sobre a veracidade das mensagens obtidas mediunicamente, e até mesmo sobre a necessidade destas mensagens. Embora isto tenha um aspecto salutar (pois realmente há muita crendice e ingenuidade entre os espíritas), há que estarmos atentos para esta ideia antiga de um “Espiritismo sem Espíritos”.

Lembremos que a ideia de Kardec sobre as manifestações transparece nas obras da codificação: a mediunidade é universal, a faculdade é natural, seu exercício deve ser livre e acessível a todos. Naturalmente, sua prática demanda estudo, método, análise, a fim de que sejam minimizados os riscos de fascinação. Restringi-la é repetir o mesmo erro que já cometemos no passado.

Os três aspectos propostos por Kardec (mediunidade, filosofia e moral) são igualmente importantes e são complementares entre si. Abdicar de um deles, é reduzir o tamanho do Espiritismo.

[1] O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Conclusão, item VII.
[2] O Livro dos Médiuns. Allan Kardec. Capítulo 23.

Ely Edison Matos

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