CARE 64

Vida eterna

“’Bom Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna?”
(Mateus 19:16)

O tema da “vida eterna” é recorrente em várias passagens dos evangelhos. No versículo citado, temos a pergunta daquele homem que se tornou conhecido, tradicionalmente, como o “moço rico”. A versão de Mateus nos oferece a oportunidade de alguns comentários.

A primeira questão é, sem dúvida, o que pode ser entendido como “vida eterna”. Muitos textos de ficção usam a ideia de uma eternidade “física” (onde a pessoa não morre). A possibilidade de superar a morte do corpo físico e viver “para sempre” seduz muita gente. As histórias costumam mostrar os prós e os contras desta situação, geralmente dando ênfase nos aspectos negativos de uma eternidade generalizada. No entanto, uma vez que não estamos vivendo numa ficção, como a noção de vida eterna pode ser entendida de maneira mais realista?

Naturalmente, o conceito faz mais sentido para aqueles que acreditam que “algo” sobrevive à morte do corpo. Os espiritualistas chamam esse algo de “espírito”, mas não há, como sabemos, um consenso entre as religiões e as filosofias sobre o que acontece com esse espírito quando o corpo expira. Para fins didáticos, podemos imaginar dois grupos: aqueles que acham que o espírito surge quando o corpo físico é formado e aqueles que acreditam que o espírito já existe antes da formação do corpo.

Para o primeiro grupo a noção de vida eterna está profundamente ligada à vida atual. Ou seja, seria a vida atual que se tornaria eterna. Eu seria, para sempre, quem sou hoje. O “eu eterno” seria apenas uma continuidade do “eu atual”, provavelmente adquirindo novos conhecimentos, estabelecendo novos relacionamentos, etc. Mas, essencialmente, seria o mesmo “eu”.

Para o segundo grupo, o dos reencarnacionistas, o “eu atual” não representa a totalidade da individualidade espiritual. A encarnação em um corpo físico é uma condição transitória. As diversas experiências corporais estariam relacionadas entre si, mas a cada encarnação estamos vivendo uma “personalidade” diferente, que sofre influências do corpo, da sociedade, da cultura, da educação, etc.

O Espiritismo se enquadra neste segundo grupo. Assim, não há sentido em querer “conseguir” ou “alcançar” a vida eterna: a vida do Espírito já é eterna [1]. Os espíritos têm um “início”, eles são criados, mas não têm um “fim”. A pergunta do moço rico (como também a do doutor da Lei, que introduz a parábola do Bom Samaritano) revelam que eles estariam no primeiro grupo, desconhecendo ou não acreditando na reencarnação.

Mas por que esta passagem é considerada literalmente, em muitos estudos espíritas? Não seria uma contradição? A questão é que muitos espíritas vêm de uma tradição religiosa (desta ou de outras encarnações) que não considera a reencarnação, em especial as religiões associadas ao cristianismo. Nesta visão, o direito à “vida eterna” é algo a ser conquistado na vida atual, de acordo com o comportamento (“que bem farei”, na pergunta do moço rico). De maneira confusa, muitos espíritas continuam a acreditar que a prática de bem é o “passaporte” para “conquistar” uma vida eterna – e pensam que essa vida eterna é uma continuação do “eu atual”.

Com o conhecimento oferecido pelo Espiritismo, talvez a pergunta mais correta (e mais longa também) fosse: “Que sentimentos, que pensamentos e que comportamentos devo desenvolver para viver bem a vida eterna que já tenho?” Refletir mais profundamente sobre o sentido de estarmos reencarnados, compreender mais claramente o quão temporário é o “eu atual” e viver mais intensamente nossa “eternidade” é a sugestão de hoje.

[1] O livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questão 153.

Ely Edison Matos

Página 4