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A parábola do deserto

“(…) e foi levado pelo Espírito ao deserto.” (Lucas 4:1)

A conhecida passagem evangélica em que Jesus é tentado no deserto pelo demônio é considerada, por Allan Kardec, como uma parábola[i]. Como ocorre com todas as parábolas, essa também permite uma diversidade de leituras e interpretações. Aqui apresentamos mais uma.

Sugerimos ao leitor a releitura atenta dos textos evangélicos (Mt 4:1-11, Lc 4:1-13). Levado ao deserto, no qual teria permanecido quarenta dias, Jesus é assediado e desafiado em três aspectos: com fome, é sugerido que transforme as pedras em pães; apresentado aos reinos do mundo, recebe a promessa de governá-los, se adorar o tentador; levado ao pináculo do templo, é tentado a se lançar, pois seria protegido pelos anjos.

Numa analogia direta e suscinta, vemos os desafios enfrentados pelo Espírito ao longo de sua evolução anímica na Terra. O deserto representa o período em que o Espírito se debate com a materialidade. A hostilidade das condições climáticas reflete a luta contra o meio; a solidão inerente fala da aridez do processo de autoconhecimento; as miragens se relacionam às ilusões que cultivamos sob a influência da matéria.

A fome está associada às necessidades materiais enfrentadas pelo Espírito, esteja reencarnado ou ligado ainda às sensações físicas. Sob a força de tais necessidades, esquecemos da nossa natureza espiritual e transformamos aquilo que deve ser “meio” para a existência (alimentação, abrigo, sexo) em “finalidade” da existência. Transformamos “pedras em pães”.

O poder – representado pela governança mundial – é a tentação enfrentada pelos Espíritos que estão com as necessidades físicas atendidas. Não precisando se preocupar com a luta pela sobrevivência, o Espírito se vê à vontade para lutar pela superioridade sobre os demais. Inteligente, mas ainda imperfeito moralmente, sua ansiedade está em se mostrar acima de todos, fazer sua opinião prevalecer, ordenar e ser obedecido, ser reconhecido e venerado. Como sabemos, a ânsia do poder não está associada às conquistas externas – estas nunca serão suficientes. É uma “tentação”, e, portanto, é interna. O poder vai ser buscado na família, no grupo de amigos, na atividade profissional, no exercício político e até nas instituições religiosas.

Enfim, há ainda um desafio a ser vencido pelo Espírito: a questão da fé, representada na parábola pela “proteção dos anjos”. A fé é dos sentimentos mais complexos. No deserto ela pode ser resultado da fraqueza física ou da confusão mental, que faz ver miragens onde nada existe. Na vida do Espírito, ela pode resultar das promessas de paraísos (ou infernos) futuros ou da ideia de uma salvação mágica, sem transformação pessoal. Iludidos por esta fé infantil, o Espírito é capaz de se lançar aos maiores equívocos e perigos por acreditar na “proteção divina”. Sem dúvida, a fé no futuro é uma condição de felicidade[ii], mas é preciso que essa fé tenha vencido, na medida do possível, as ilusões materiais.

O jejum, o deserto, a tentação, todos serão comentados ainda por séculos, dada a sua força simbólica. Nós, que somos os verdadeiros protagonistas da parábola, precisamos estar atentos às advertências que ela traz.


[i] A Gênese. Allan Kardec. Cap. 15 item 52.

[ii] O Livro dos espíritos. Allan Kardec. Questão 922.

Ely Edison Matos

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