CARE 54

Lavar as mãos

“Por que não andam os teus discípulos conforme a tradição dos antigos, mas comem o pão com as mãos por lavar?” (Marcos 7:5)

A pergunta dos escribas e fariseus, registrada no evangelho de Marcos, é outro exemplo de uma situação constante ao longo dos ensinos de Jesus: o contraste entre a “tradição dos antigos” e a “boa nova”. Este contraste continua sendo um desafio para os cristãos até hoje.

Como educador, Jesus possuía um amplo leque de métodos educativos. O uso de imagens e parábolas, os sermões e discursos públicos, o diálogo intimista e individual, a reflexão sobre cenas cotidianas e os comentários feitos nas sinagogas são alguns deles. Outro que ele usa frequentemente é o questionamento das tradições e costumes judaicos, provocando as autoridades religiosas, como vemos nesta passagem.

Como toda cena evangélica, essa também pode ser comentada em diversos níveis de interpretação. Como “lavar as mãos” – neste contexto – é um comportamento ritual de purificação (e os judeus as lavavam muitas vezes[i]) o que está sendo questionado, no fundo, é o sistema de crenças.

Apesar do estudo do comportamento humano ser uma área muito complexa da psicologia, em termos muito simples poderíamos dizer que há comportamentos motivados exteriormente e outros motivados interiormente. A motivação exterior funcionaria como uma espécie de estímulo-resposta: dado um estímulo externo, respondemos de certa forma. Embora isso seja facilmente perceptível para questões físicas, o processo é mais sutil para questões psicológicas ou morais.

O comportamento ritual coletivo é uma convenção social. Portanto, pode ser visto como um estímulo exterior. Muitos judeus lavavam as mãos porque essa era a tradição. Não havia uma consciência maior da motivação. Como hoje, em tempos de pandemia, ensinamos as crianças a usar o álcool gel, embora elas realmente não entendam o porquê.

As convenções coletivas são importantes para a sociedade. Então é possível que não seja isso que Jesus esteja questionando quando ele e seus discípulos não lavam as mãos. Talvez o que esteja em questão é como atos de motivação exterior substituíram a motivação interna, como processo de aprendizado espiritual.

De maneira geral, as tradições religiosas estabelecem um conjunto de ritos, rituais, mandamentos, proibições, geralmente através de dogmas, como processo de exercício espiritual (ou salvação, ou purificação, ou evolução, etc.). Os profitentes de cada tradição devem cumprir tais regras. No entanto, a maioria destes “procedimentos” tem caráter exterior. Embora úteis, estas manifestações exteriores não são suficientes, por si só[ii]

A “boa nova”, ou seja, a ética proposta por Jesus, propõe um crescimento espiritual mais verdadeiro. Esse crescimento se daria de forma íntima, ou dito de outra forma, através da transformação do sistema de crenças de cada um de nós. Crenças e valores constituem o “núcleo duro” de nossa personalidade e, portanto, tais mudanças são realmente mais complicadas. Nós resistimos a elas de variadas formas.

Felizmente, o Espiritismo nos mostra que, se há urgência nesta transformação, não há pressa. O que está em transformação não é a pessoa perecível que estamos vivendo hoje, mas o Espírito imortal que somos.

Os discípulos não lavavam as mãos. Mas nós lavamos. A diferença é que sabemos porque o fazemos.


[i] Marcos 7:3.

[ii] O Livro dos Espíritos, Allan Kardec. Questão 653.

Ely Edison Matos

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