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Perspectiva

Em O Evangelho Segundo o Espiritismo [1], Allan Kardec anota:

“A ideia clara e precisa que se faça da vida futura dá uma fé inabalável no porvir, e essa fé tem consequências enormes sobre a moralização dos homens, porque muda completamente o ponto de vista sob o qual eles encaram a vida terrena.”

Na prática, porém, mesmo entre os espíritas, observa-se que essa “mudança de ponto de vista” é extremamente difícil e raramente realizada. Surge, então, de forma natural, a pergunta: por que isso acontece, se o Espiritismo é tão claro em suas propostas?

A nosso ver, há diversos fatores que contribuem para esse estado de coisas. Neste breve texto, vamos nos ater a apenas três, cientes de que a situação é mais complexa. Os fatores destacados para a dificuldade dos espíritas em viver uma vida mais espiritual são:

  • a subjugação às leis físicas, biológicas e sociais;
  • a inversão de prioridade entre Cristianismo e Espiritismo;
  • a falta de amadurecimento espiritual.

Comecemos pelas leis físicas e pela biologia. A encarnação, por definição, coloca o Espírito em um contexto material no qual a matéria cria a ilusão de realidade absoluta. As coisas possuem massa e requerem força para serem movimentadas; a gravidade dificulta a locomoção; a entropia parece instituir a desordem como norma. Tudo isso se reflete no corpo biológico, que, por sua natureza, insere o Espírito em um ciclo vital de nascimento e morte. Profundamente enredado nas energias físicas, o Espírito sente a dor por meio do sistema nervoso, sofre variações de humor e desejo devido a hormônios, precisa alimentar-se constantemente para manter a vida, depende de roupas e abrigos para enfrentar o clima e está sujeito, pela fragilidade do organismo humano, a múltiplas doenças.

Essas condições repercutem nas organizações sociais dos encarnados. Instituições voltadas à produção de alimentos, ao cuidado com a saúde (física e mental), à distribuição e remuneração do trabalho, à construção de moradias e à promoção do lazer tornam-se essenciais, consumindo quase todo o tempo e atenção coletivos. Por outro lado, as desigualdades — traço marcante da vida material — impõem a necessidade de leis, órgãos de segurança e sistemas judiciários. Não surpreende que, imerso nessas circunstâncias, o indivíduo relegue a segundo plano, quando muito, os aspectos espirituais da vida.

Foi nesse cenário que as religiões surgiram, buscando oferecer um sentido para a existência. Quase todos os que refletiram sobre tal questão, partindo apenas da perspectiva física, não chegaram a explicações satisfatórias. É natural, portanto, que as religiões procurem respostas em algo que transcenda a matéria — em alguma forma de vida espiritual. Nesse aspecto, o Espiritismo, vinculado à tradição cristã, não se diferencia: considera a vida física transitória e temporária, não constituindo a “vida verdadeira” do Espírito. Este, imerso em um processo de evolução contínua, progride por inúmeras experiências rumo a um estado cada vez maior de perfeição e equilíbrio.

Entretanto, em nossa opinião, há uma inversão de prioridade por parte de muitos espíritas na abordagem da questão espiritual. Em geral, a proposta de Jesus é tratada como um “meio” para alcançar o estado de perfeição espiritual, como ocorre nas demais religiões cristãs. Há uma ideia implícita de que, compreendendo a mensagem de Jesus, compreender-se-á a proposta espírita. O resultado é o predomínio de temas relacionados ao evangelho e, proporcionalmente, menor dedicação ao estudo doutrinário do Espiritismo.

Por que entendemos que isso constitui uma inversão? Porque a essência da mensagem de Jesus é simples e acessível a todos. Amor, perdão, resignação, empatia e compaixão são ideias claras, pois todos nós, desde sempre, necessitamos dessas virtudes. O difícil, aquilo que permaneceu por quase dois mil anos sem explicação para os cristãos, é como alcançar o estado de sentir e viver tais princípios. Baseado na ideia de uma única vida, o cristianismo tradicional nunca apresentou, de modo coerente, como atingir um grau mais elevado de excelência espiritual — o que Jesus de fato propõe. A ênfase na fé cega, em cultos e cerimônias, em dogmas e “mistérios” apenas desvia a atenção do objetivo central.

O Espiritismo, ao contrário, oferece a compreensão de uma vida espiritual e de um processo evolutivo contínuo, que inclui reencarnações periódicas no plano físico. O estudo da mediunidade demonstra a possibilidade de contato entre os dois planos — físico e espiritual — revelando que são faces de uma mesma realidade. A prática da caridade estabelece as bases para relações sociais harmoniosas. Esses elementos constituem o “meio” para compreender a mensagem de Jesus, e não o inverso. Sem o estudo e a efetiva assimilação da proposta espírita, mesmo que conhecedores do evangelho, tenderemos a continuar priorizando o mundo físico em detrimento do espiritual.

Essa situação conecta-se ao terceiro ponto: a falta de amadurecimento espiritual. Ao mencioná-la, referimo-nos apenas a uma consequência natural de tudo o que foi exposto. Se estamos em constante progresso espiritual, é compreensível que muitos Espíritos ainda não estejam plenamente “conectados” à ideia de uma vida espiritual. Nesse sentido, estar encarnado ou desencarnado faz pouca diferença para tais Espíritos. É possível que bilhões, incluindo eu, que escrevo, e você, que me lê, ainda nos encontremos nessa condição. Nossas capacidades cognitivas, emocionais e morais podem estar em estágio incipiente, influenciadas e até condicionadas pelos fatores físicos, biológicos e sociais mencionados. Permanecemos vinculados a estruturas materiais; nossas emoções e sentimentos são despertados por questões terrenas. Tememos a perda, a doença, a dor, a morte. Sofremos com lembranças do passado que não retorna, experimentamos estresse com tarefas do presente que pouco contribuem para nosso crescimento espiritual e ansiamos por desejos projetados num futuro que não chega.

Tudo isso revela nossa necessidade de aproveitarmos todas as brechas que a vida cotidiana nos oferecer para refletir sobre nossa condição de Espíritos imortais, para dar sentido à história que estamos escrevendo há séculos, para nos colocarmos acima das circunstâncias em que a vida física nos oprime, para, enfim, mudarmos de perspectiva.

Referências bibliográficas:

[1] O Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo II, Item 5.

Ely Edison Matos

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