Fatos e crenças
Muita gente pergunta por que, atualmente, os fenômenos mediúnicos não se manifestam com a mesma frequência e intensidade do final do século XIX e início do XX. Essa é uma questão legítima e remete a uma época em que os fenômenos eram abundantes e, em muitos casos, objeto de estudo por parte de pesquisadores renomados. Entre os nomes que se destacaram nesse esforço investigativo, podemos citar William Crookes, Camille Flammarion, Charles Richet, Zoellner, Wallace, Aksakof, entre tantos outros que se dedicaram, com seriedade e método, à análise dos fenômenos psíquicos e mediúnicos. A escassez de experiências contemporâneas levanta dúvidas quanto à natureza e à continuidade desses fenômenos, especialmente dentro do movimento espírita.

A esse respeito, é essencial distinguir dois elementos frequentemente confundidos: os fenômenos mediúnicos, enquanto manifestações sensoriais e físicas que são observáveis, e a Doutrina Espírita propriamente dita, enquanto corpo filosófico. Os fenômenos, como já notava Kardec, são universais e tão antigos quanto a própria humanidade. Sua ocorrência foi interpretada, ao longo do tempo, de acordo com os referenciais culturais e religiosos vigentes: ora como milagres divinos, ora como ações demoníacas, ora como bruxaria ou manifestações sobrenaturais inacessíveis ao entendimento comum. A própria figura do médium foi, em diferentes épocas, exaltada como santa ou perseguida como herética.
A partir da chegada do moderno espiritualismo em Hydesville e, posteriormente, com a sistematização feita por Allan Kardec, a mediunidade passou a ser estudada. O que antes era envolto em misticismo ou segredo passou a ser tratado com método, crítica e racionalidade. A publicação de “O Livro dos Médiuns” representou um marco nesse processo, oferecendo uma abordagem experimental, lúcida e progressiva da mediunidade. Mesmo assim, é fundamental compreender que o Espiritismo não se resume aos fenômenos que o revelaram ao mundo.
O Espiritismo é, antes de tudo, uma filosofia espiritualista, estruturada sobre ideias e princípios derivados da comunicação com os Espíritos, mas cuja essência está na elaboração de um pensamento ético, filosófico e científico sobre a existência. Há, portanto, uma diferença substancial entre os fatos mediúnicos (empiricamente verificáveis, mesmo que muitas vezes sejam mal compreendidos) e os princípios doutrinários que, embora inspirados por tais fatos, são objetos de crença. Quando falamos em “crença”, não o fazemos no sentido pejorativo de adesão cega ou dogmática, mas como reconhecimento de que muitas das verdades que o Espiritismo propõe ainda não podem ser demonstradas nos moldes do paradigma científico tradicional.
Essa distinção entre fato e crença foi vivida pelo próprio Kardec em sua jornada inicial. Em seu relato autobiográfico, ele narra como inicialmente considerou plausível a movimentação das mesas por uma força mecânica, talvez relacionada ao magnetismo. Mas quando lhe falaram que as mesas poderiam “falar”, expressar ideias e responder a perguntas, reagiu com ceticismo. Com lucidez, observou que “só acreditaria quando visse” e, mesmo depois de constatar os fatos, recusou-se a atribuir inteligência a um objeto material [1]. Foi esse espírito de investigação, recusando explicações fáceis, que o levou a aplicar ao Espiritismo o método experimental, colhendo observações, comparando-as, elaborando hipóteses e deduzindo consequências, como fazia em seus estudos anteriores.
Kardec não foi um crédulo maravilhado com prodígios. Foi um filósofo educado no rigor do raciocínio. E é com esse espírito que devemos ler suas obras. Em sua abordagem, os Espíritos não são oráculos infalíveis, mas interlocutores cuja autoridade deriva do grau de elevação moral e intelectual. A pluralidade das comunicações, a comparação das mensagens, o encadeamento lógico das ideias — tudo isso demonstra que, desde o início, o Espiritismo foi uma doutrina que se construiu na interseção entre fato e reflexão, entre observação e crença, entre sensibilidade e razão.
Mesmo assim, é legítimo reconhecer que os princípios fundamentais da doutrina — a existência e imortalidade da alma, a pluralidade das existências, a comunicabilidade dos Espíritos, entre outros — não são passíveis de estudo científico no sentido estrito. Eles constituem um sistema de crenças racionalmente construído, fundado na coerência, na convergência dos testemunhos, na lógica interna e na consonância com valores universais. São, nesse sentido, distintos dos fenômenos mediúnicos que podem, ao menos em tese, ser reproduzidos e observados por qualquer um.
Por outro lado, seria um erro imaginar que apenas as religiões operam com crenças. A própria ciência, que frequentemente é tida como o único discurso legítimo sobre a realidade, em muitos casos também se funda em postulados que não são verificáveis diretamente. A construção de hipóteses científicas — sobretudo nas ciências humanas, cognitivas ou mesmo na física moderna — envolve intuições, pressupostos filosóficos, visões de mundo. Realistas, idealistas, materialistas, espiritualistas, empiristas ou fenomenologistas interpretarão um mesmo fato de modos profundamente distintos. E o que chamamos de “método científico” não é um instrumento neutro, mas um sistema metodológico nascido no século XIX, moldado por um paradigma materialista-cartesiano, que define de antemão o que pode e o que não pode ser objeto de estudo.
Revoluções científicas [2] levam tempo, geralmente mais de uma geração. E até hoje, a maior parte das universidades, laboratórios e revistas científicas permanecem presas a esse paradigma materialista. Isso significa que qualquer tentativa de validar os princípios espíritas por esse método corre o risco de ser rejeitada não por falha lógica, mas por exclusão de objeto. A espiritualidade não entra nos quadros conceituais da ciência tida como “oficial”. Isso, no entanto, não anula o valor das crenças espíritas, nem a legitimidade da fé racional que as sustenta.
Na tradição cristã, o próprio Jesus reconheceu o valor da fé que transcende o testemunho direto. Ao dizer a Tomé: “Porque me viste, creste; bem-aventurados os que não viram e creram” (João 20:29), ele destaca não a crença ingênua, mas a confiança esclarecida, uma espécie de entrega que nasce da sintonia íntima com o bem, e não da exigência constante de provas. Essa lição continua atual. Em tempos de relativismo e descrença, a chamada “fé raciocinada” continua sendo um dos pilares da proposta espírita.
Se hoje há menos fenômenos mediúnicos visíveis, talvez seja porque o foco do movimento espírita, desde meados do século XX, se deslocou para o campo moral e filosófico. A mensagem de reforma íntima, caridade e evolução espiritual ganhou mais importância, em muitos casos relegando os fenômenos à condição de curiosidade ou até de tabu. Muitos espíritas com décadas de vivência no movimento nunca participaram de sessões mediúnicas nem presenciaram manifestações ostensivas. Isso revela como o Espiritismo, enquanto cultura e prática, privilegiou a crença reflexiva em detrimento da experimentação direta.
Contudo, esse desequilíbrio também pode ser repensado. O Espiritismo nasceu do encontro entre o fato e a ideia, entre o fenômeno e a interpretação. Recuperar o ímpeto dos primeiros pesquisadores, com sua abertura investigativa, sua ousadia filosófica e sua disciplina metodológica, pode ser mais um caminho para o movimento espírita. Não se trata de buscar fenômenos por espetáculo, mas de reatar com a atitude científica que deu origem à doutrina. A realidade espiritual continua a nos cercar, e os Espíritos não se ausentaram. Mas talvez estejamos menos disponíveis, menos atentos, menos dispostos a observar, perguntar, comparar, deduzir.

Enquanto seres em evolução, estamos longe de compreender plenamente a realidade espiritual. Nossas crenças são tentativas de organizar o desconhecido, à luz da razão e da experiência. Não nascem do vazio, mas também não se encerram no fato puro e simples. Por isso, mais do que escolher entre fé e razão, entre fenômeno e filosofia, entre fato e crença, o Espiritismo nos convida a integrá-los. Com humildade diante do que não sabemos e coragem para investigar o que ainda não compreendemos.
Referências bibliográficas:
[1] Obras Póstumas, Allan Kardec, Segunda parte, Minha primeira iniciação no Espiritismo
[2] A Estrutura das Revoluções Científicas, Thomas Kuhn
Ely Edison Matos
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