Livre-arbítrio
A ideia de liberdade sempre esteve presente na consciência humana. A possibilidade de agir de acordo com a própria vontade, sem coação e sem restrições, é uma aspiração que atravessa os tempos. Portanto, a discussão de temas como o livre-arbítrio, o determinismo, a fatalidade, etc. sempre esteve na pauta dos pensadores. Allan Kardec enriquece esse debate, quando apresenta a “Lei de Liberdade”, em O Livro dos Espíritos [1].

O conflito básico é conhecido: como agir com inteira liberdade e ao mesmo tempo respeitar os direitos alheios? Neste ponto, a ideia de liberdade se choca com a ideia de sociedade. “Desde que estejam juntos dois homens, há entre eles direitos recíprocos que lhes cumpre respeitar” [2]. Como é impossível imaginar o ser humano fora de uma sociedade, a liberdade absoluta também parece impossível.
O que pode ser discutido, então, é uma liberdade relativa, que possui uma grande diversidade de aspectos, tais como liberdade de pensamento, de opinião, de ação, de expressão, etc. Cada um destes aspectos está sujeito a um tipo de limite ou restrição. Como o Espírito apresenta várias dimensões (moral, psicológica, social, física), as restrições à sua liberdade também se apresentam em várias dimensões.
Algumas limitações são óbvias. Estando ligado à matéria, o Espírito encarnado está sujeito às leis desta matéria. Um exemplo singelo: o corpo físico possui uma massa que sofre a ação da gravidade. Esta força é maior do que a força que consigo fazer por mim mesmo, então eu não consigo “voar”. Enquanto encarnados, temos de nos contentar em arrastar o corpo físico. Porém, há aspectos mais sutis da influência da matéria. A estrutura orgânica, as condições genéticas, as enfermidades, tudo isso limita – e muito – a liberdade do Espírito [3].
No campo social, desde o desenvolvimento das várias escolas de Sociologia a partir do início do século passado, temos uma noção maior de o quanto a vida social também restringe a liberdade. Não apenas a necessidade de respeito ao direito alheio, que é o aspecto mais óbvio. A sociedade, através da cultura, das normas sociais, da estrutura política, do sistema econômico, da legislação em vigor e de condições negativas generalizadas (criminalidade, corrupção, preconceitos, etc.) limita tremendamente a possibilidade de expressão e ação do Espírito. Coagido socialmente em diversas dimensões, o Espírito muitas vezes não consegue nem reconhecer o que é a sua vontade própria ou o que é uma imposição social [4].
E nas questões psicológicas? Teríamos uma liberdade mais completa, a famosa “liberdade de pensar”? Ainda aqui precisamos estar atentos, pois muitas “questões psicológicas” estão relacionadas às questões anteriores, a condição física e a condição social. Muito da nossa “visão de mundo”, da nossa “personalidade”, do nosso “jeito de ser”, na verdade sofreu influências das situações associadas ao início desta encarnação. O ambiente familiar (com toda a complexidade das relações familiares e seus reflexos nas crianças), o ambiente escolar (e suas primeiras experiências com o “mundo real” fora de casa), o grupo de amigos no início da adolescência, a iniciação nas questões relativas à sexualidade, e muitos outros fatores, influenciaram – e influenciam – a nossa condição psicológica desta encarnação. Como é sabido, muitos dos nossos desejos, pensamentos e atos, são mais uma “reação” ao mundo, do que uma “ação” no mundo.
Chegando a este ponto, fica parecendo que não há sentido falar em “livre-arbítrio”. As coerções e as restrições parecem tão abrangentes, que “liberdade de escolha” parece um conceito quimérico. E esse realmente é o pensamento de muitos filósofos e pensadores, que negam o livre-arbítrio humano, considerando-o uma fantasia. Mas lembramos que ainda falta uma dimensão: a moral.
A moral, entendida aqui especificamente como a nossa condição espiritual que estabelece a nossa forma de relacionar com as outras pessoas, é o campo onde temos maior liberdade. Relativa, sim, pois não há liberdade absoluta, mas certamente maior do que nos outros campos. Façamos uma analogia, para ilustração. Você vai à sorveteria e só existem três sabores disponíveis. Nenhum dos três é o que você queria, mas você tem a liberdade de escolher um deles (ou de não escolher nenhum). A escassez de sabores limitou sua escolha, mas não a suprimiu. Comparativamente, as condições físicas, sociais e psicológicas limitam sua escolha em uma dada situação. Mas não eliminam a sua possibilidade de escolher. O livre-arbítrio existe como potência.
Não conseguimos impedir que certa enfermidade nos alcance. Mas podemos decidir como vamos lidar com ela. Não conseguimos aumentar nosso salário, mas podemos decidir como gastar o que recebemos. Não conseguimos ter a casa do tamanho que desejamos, mas podemos mantê-la limpa e agradável. Não conseguimos evitar a falência de um projeto pessoal, mas podemos evitar punir outras pessoas por causa disso. Não conseguimos evitar a corrupção no mundo, mas podemos não corromper a nós mesmos.
Certamente não podemos alcançar tudo que queremos, mas podemos querer tudo que seja possível alcançar.

Referências bibliográficas:
[1] O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, Parte 3, Capítulo 10.
[2] O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, Parte 3, Capítulo 10, Questão 826.
[3] O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, Parte 3, Capítulo 10, Questão 847.
[4] O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, Parte 3, Capítulo 10, Questão 850.
Ely Edison Matos
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