Lei divina ou natural
Podemos imaginar que o ser humano sempre procurou entender e explicar os fenômenos naturais. Observando a natureza, inclusive a natureza humana, buscamos incessantemente padrões, regras e regularidades que possam nos mostrar as relações de causa e efeito e nos ajudar a prever acontecimentos futuros. Ou seja, buscamos as “leis” por trás dos fenômenos.
Na história da humanidade, essa busca pode ser dividida, de maneira extremamente simplificada, em duas vertentes, que vamos chamar aqui de “religiosa” e “científica”. A vertente religiosa considera a existência de uma força que transcende a própria natureza e que cria, mantém, organiza e controla essa natureza. Mais comumente, essa força é chamada de Deus e é considerada a causa primária de todas as coisas que existem. A vertente científica, por outro lado, tenta entender a natureza em si mesma, sem buscar uma causa exterior. As forças que regem os fenômenos naturais e humanos estariam na própria natureza e nos homens.
Como em toda situação em que ciência e religião são contrapostas, é fácil observar que essas vertentes são complementares. A diferença de abordagem se espelha no vocabulário usado. Enquanto as religiões vão tratar de “leis divinas” e de “revelações” dessas leis divinas, as ciências vão falar de “leis naturais” ou “leis científicas”, estabelecidas a partir de evidências empíricas, que sejam matemática e logicamente consistentes e capazes de fazer previsões verificáveis. Outra diferença é que, enquanto as leis divinas são consideradas imutáveis, as leis científicas são passíveis de contestação e refinamento.
Onde se situa a abordagem espírita? Uma das principais propostas do Espiritismo – muitas vezes subestimada pelos estudantes espíritas – é a necessidade de uma aliança entre ciência e religião. Para Kardec, “A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral.” [1] Para ele, a incompatibilidade e o conflito entre as duas abordagens vêm do fato de cada uma querer explicar os fenômenos de maneira absoluta e exclusivista.
O Espiritismo, se colocando como o elo que une as duas abordagens, assume uma posição única. Por isso, é impossível definir o Espiritismo como ciência ou como religião. Os debates sobre este ponto são sempre inconclusivos, pois o Espiritismo deve ser visto como uma ponte: não faz sentido perguntar a qual margem do rio uma ponte pertence. Ao mesmo tempo em que Kardec diz que as leis morais e materiais têm em Deus o mesmo princípio (uma abordagem religiosa), ele afirma que as leis que regem o universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo são comparáveis às que regem o movimento dos astros e a existência dos seres (uma abordagem científica).
Esta posição já havia sido estabelecida desde a primeira edição de “O Livro dos Espíritos”, quando o primeiro capítulo do Livro Segundo (ou Livro Terceiro na segunda edição) é intitulado “Lei divina ou natural”. Certamente, este livro é essencialmente focado no ser humano e não na natureza de forma geral (tanto que recebe o título de “Leis Morais”), mas já apresentava a ideia de que as leis são tanto reveladas [2] quanto podem ser conhecidas pelo estudo, pela reflexão e pela investigação [3].
Enfim, a abordagem espírita é detalhada no texto “Caráter da Revelação Espírita” [4], onde Kardec apresenta o duplo caráter da revelação espírita (tanto divina quanto humana). Se a lei divina é imutável [5], sua revelação é progressiva [6] e o esforço humano no desenvolvimento das ciências faz parte deste trabalho de revelação. Neste sentido, as dez leis morais propostas por Kardec [7] devem ser vistas como parte deste trabalho humano, estando sujeitas, como a própria Doutrina Espírita, à progressão das ideias.
Referências:
[1] O Evangelho Segundo o Espiritismo. Capítulo 1, Item 8.
[2] O Livro dos Espíritos. Parte 3, Capítulo 1, Questão 622.
[3] O Livro dos Espíritos. Parte 3, Capítulo 1, Questões 626 e 628.
[4] A Gênese. Capítulo 1.
[5] O Livro dos Espíritos. Parte 3, Capítulo 1, Questão 615.
[6] O Livro dos Espíritos. Parte 3, Capítulo 1, Questão 628.
[7] O Livro dos Espíritos. Parte 3.
Ely Edison Matos
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