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Causalidade

Se todo efeito tem uma causa, todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente. [1]

A ideia de causalidade, ou seja, a relação existente entre um efeito e sua causa, pode ser considerada um dos princípios básicos da Doutrina Espírita. Bem conhecida e aplicada aos fenômenos físicos, essa ideia foi ampliada por Allan Kardec e aplicada aos fenômenos mediúnicos. Basicamente, se um fenômeno físico qualquer apresenta algum traço de “inteligência” (ou de intencionalidade), pode-se concluir que a origem do fenômeno também possui alguma “inteligência” (ou intencionalidade). Se a ocorrência apresenta características de uma inteligência humana e não é provocada por um ser humano encarnado, só pode ser provocada por um ser humano desencarnado, ou Espírito. Por isso, os Espíritos são considerados “os seres inteligentes da criação” [2].

A aparente generalidade e simplicidade da relação entre efeito e causa fez com que ela ganhasse o status de uma “lei”: a Lei de Causa e Efeito, expressão bastante conhecida dos estudantes espíritas. Como vimos, causa e efeito são reconhecidos no mundo físico e no mundo “intelectual” (ou cognitivo). A questão curiosa, no entanto, é que essa lei foi estendida também para o mundo moral, ou seja, aquele associado ao comportamento dos Espíritos. Embora essa extensão pareça óbvia e natural, é preciso notar que ela realmente demonstra uma ideia filosófica. Portanto, não é tão óbvia e natural assim.

Não apenas essa “lei” passou a ser aplicada aos atos morais, mas ela é muitas vezes igualada à chamada “Lei de Ação e Reação”, introduzida na Física por Newton: “a toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade”. É importante frisar que, embora as duas leis estejam relacionadas, elas não são – e nem significam – a mesma coisa. Entre muitas expressões evangélicas usadas para justificar essa associação, talvez a mais conhecida seja “a cada um segundo suas obras” [3].

Há muitos problemas em se aplicar de maneira superficial – como geralmente é feito – a ideia de causa e efeito ao mundo das ações morais. Naturalmente, neste pequeno texto não é possível explorar todos esses problemas, mas gostaríamos de citar pelo menos três: a questão da correlação, a causalidade simples e a ideia da “causa final”.

De maneira informal, correlação representa uma relação de dependência. Dois eventos ou situações estão correlacionados se a ocorrência de um influencia a ocorrência de outro, seja de forma causal ou não causal. Por exemplo, a altura dos filhos está relacionada à altura dos pais, mas a altura dos pais não necessariamente determina (ou causa) a altura dos filhos, porque há outras variáveis em jogo.

Nós, seres humanos, evoluímos de maneira a buscar relações entre os eventos que presenciamos ou conhecemos. Esse processo faz parte do nosso desenvolvimento intelectual. Entender como um evento afeta outro evento é fundamental para nossa ação inteligente no mundo. Mas, como não somos seres apenas intelectuais, mas também emocionais e criativos, facilmente extrapolamos a ideia de correlação para um pensamento que poderíamos chamar de “mágico” (ou não racional). Por exemplo, ficamos sabendo de um acidente e o relacionamos a um sonho que tivemos na noite anterior; ou usamos uma joia ou roupa porque “dá sorte”.

Portanto, há um problema em se aplicar a “lei de causa e efeito” a eventos que estão apenas correlacionados entre si. Esse problema aparece claramente quando queremos explicar certos eventos da atual encarnação com base em supostos eventos de uma encarnação anterior.

Outra questão é que muitas pessoas pensam na “lei de causa e efeito” considerando uma causalidade simples. Na causalidade simples, um evento causa outro evento, e este causa outro e assim por diante, criando uma cadeia de causalidade. Embora existam cadeias de causalidade simples, como regra geral o que vigora é uma causalidade chamada “complexa”: um evento não tem apenas uma única causa e não gera apenas um único efeito. Um evento tem muitas causas – às vezes inumeráveis – e gera muitos efeitos – às vezes inumeráveis. Não apenas isso, mas a ocorrência de um efeito pode afetar o próprio evento. Isso é comum nas ocorrências humanas. Por exemplo, uma enfermidade provocada pela dificuldade em se alimentar pode tornar ainda mais difícil se alimentar. É como se o efeito se tornasse também uma causa do próprio efeito.

Por isso, é preciso muito cuidado quando se diz que “fulano está passando por isso porque fez aquilo”. Raramente a situação é tão simples assim.

Finalmente, há a questão da “causa final”. É quando tentamos explicar um efeito dizendo que esse efeito é a “finalidade” da causa. Num exemplo simples, seria pensar que uma árvore frutífera existe (um efeito) para nos alimentar (a causa). Não é difícil ver que, muitas vezes, esse é um pensamento “mágico” também, principalmente quando nos colocamos “no centro do mundo”, como se tudo existisse apenas para nós. Entre os espíritas, é comum o pensamento, por exemplo, de que certas dores existem para que possamos “aprender” com elas. Embora isso possa até acontecer em alguns casos, essa atribuição de uma “finalidade” para a dor deve ser melhor analisada.

Assim, a “lei de causa e efeito” ou a ideia de “causalidade” não é tão simples quando aplicada às questões morais. Enriquecidos pelo conhecimento espírita, podemos ampliar a forma de ver tais conceitos.

Referências:

[1] O Espiritismo em sua expressão mais simples. Allan Kardec. Histórico do Espiritismo.

[2] O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questão 76.

[3] Mateus 16:27.

Ely Edison Matos

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