O que foi dito
“Ouvistes que foi dito (…)” (Mateus 5:43)
No chamado “Sermão do Monte”, apresentado nos capítulos 5, 6 e 7 do Evangelho de Mateus, Jesus resume, de certa forma, o seu ensinamento espiritual. Como todos sabemos, esse ensinamento tem sido discutido até hoje e nós continuamos tentando apreendê-lo e aprendê-lo.
Buscando fazer uma ligação como o que já era conhecido e experimentado pelas pessoas, em vários momentos Jesus repete a fórmula: “Ouvistes que foi dito (…) mas eu vos digo (…)”. Sua intenção, segundo Allan Kardec[i] não era destruir a lei vigente, mas desenvolvê-la, adaptando-a ao progresso realizado.
Três pontos específicos chamam a atenção no ensinamento de Jesus: uma nova visão sobre Deus, sobre a igualdade dos homens e sobre o futuro. Como sempre, estes pontos são melhor compreendidos com o auxílio do conhecimento espírita.
Ao apresentar Deus como um pai justo, amoroso e bom, Jesus amplia a noção do Deus dos hebreus, que era essencialmente justiça. Anteriormente, Justiça e Amor eram praticamente a mesma coisa. Jesus mostra que o Amor excede a Justiça: a questão não é apenas fazer o que é justo – ou o que a Lei manda – mas considerar se isso não fere a lei de Amor que deve viger entre as pessoas. Talvez o maior exemplo desta mudança seja o episódio da mulher adúltera[ii].
O Espiritismo mantém a proposta de Jesus por um lado e, por outro, a amplia. A ideia de Deus, proposta por Kardec com base nos ensinos dos Espíritos[iii], tem uma dimensão universal, que ultrapassa os cuidados apenas com a natureza humana terrestre. Deus deixa de ter somente uma representação concreta como ”pai” e ganha uma dimensão abstrata como “inteligência e causa”. A vontade e a providência divinas passam a ser representadas pelas chamadas “leis naturais” e nosso dever em relação a Deus passa ser conhecer e cumprir essas leis.
Um segundo ponto se refere à igualdade entre os homens (que, para o Espiritismo, significa a igualdade entre os Espíritos). Jesus busca mostrar aos judeus que “igual” não é apenas um outro judeu, mas todas as pessoas. Essa ideia talvez tenha sido a que teve maior resistência. Aliás, por se tão revolucionária, a resistência existe até hoje: os cristãos modernos continuam rejeitando – e combatendo – qualquer outra doutrina ou religião.
A proposta de Jesus fica mais clara ao entendermos que Jesus falava para o Espírito que somos e não para o ser encarnado que estamos. Iguais não são os homens – pois a desigualdade evolutiva e a necessidade de experiências distintas sempre vai levar a uma diferença entre os encarnados. No entanto, como Espíritos, somos iguais, por termos tido a mesma criação divina, termos saído do mesmo ponto inicial de ignorância e estarmos – todos – fadados ao mesmo progresso evolutivo. O reconhecimento de nossa natureza comum – que poderia ser chamado de fraternidade ou irmandade – é um dos requisitos para esse progresso.
Finalmente, Jesus apresenta a ideia de um futuro melhor que o presente, apesar de quase sempre fazer isso de forma velada. As bem-aventuranças[iv] falam do “reino de Deus”, do consolo futuro, de se “herdar a terra”, etc. Para os cristãos, que acreditam em uma única existência corporal, Jesus está falando da vida espiritual. Naturalmente que está. Para os judeus que o ouviam, já seria uma grande novidade saber que o estado feliz depois da morte não dependeria apenas de ter cumprido rigorosamente a Lei, mas também de ter suportado com resignação (ou seja, sem cometer novos erros) as agruras de estar reencarnado.
O Espiritismo, porém, revelando os mecanismos da pluralidade das existências físicas, permite uma compreensão estendida. Jesus estaria falando não apenas da vida espiritual, mas das próximas existências corporais neste mesmo planeta. A Terra, como sabemos, evolui na sua condição espiritual[v]. Habitado no futuro por Espíritos mais equilibrados e moralizados, na chamada condição de “regeneração”, esse mundo poderia cumprir integralmente as promessas de um futuro melhor, feitas por Jesus. O caminho para chegar até lá, ele mesmo traçou na Boa Nova.
Vemos assim, com facilidade, que se Jesus propôs a
compreensão das Leis Divinas de forma adaptada ao seu tempo, o mesmo faz o
Espiritismo na atualidade. Sem contradizer a proposta evangélica, temos a
oportunidade de compreendê-la de forma bem mais ampla.
[i] O Evangelho segundo o Espiritismo. Allan Kardec. Cap. 1.
[ii] Evangelho de João, cap. 8:3-11.
[iii] A Gênese. Allan Kardec. Cap. 2.
[iv] Evangelho de Mateus, cap. 5:3-13.
[v] O Evangelho segundo o Espiritismo. Allan Kardec. Cap. 3.
Ely Edison Matos
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