O Espiritismo é cristão?
Não raro, nossos irmãos das mais diversas vertentes do cristianismo afirmam que o Espiritismo contraria os ensinos de Jesus, o que é dito na Bíblia e, por isso, é anticristão. É natural que tais objeções sejam levantadas. Mas será que elas se sustentam?

Partindo do começo, é necessário estabelecer um lugar-comum da discussão e situar, adequadamente, o Espiritismo dentro do cristianismo. Alega-se que ele não é cristão por não crer que Jesus seja Deus encarnado, não praticar os rituais/sacramentos, negar a ressurreição e outras questões. Pensando a partir desta definição de “cristão”, a afirmação é correta: o Espiritismo não seria cristão.
Entretanto, saindo do campo apenas de dogmas e entrando, de fato, na mensagem trazida por Cristo, nos seus ensinamentos morais, a questão já muda radicalmente de perspectiva. O Espiritismo é explicitamente claro ao colocar a moral de Jesus no mais alto grau:
“A moral que os Espíritos ensinam é a do Cristo, pela razão de que não há outra melhor” [1].
“O Cristo foi o iniciador da mais pura, da mais sublime moral” [2].
Qual o tipo mais perfeito que Deus já ofereceu ao homem para lhe servir de guia e modelo? “Jesus” [3].
Peguei apenas três passagens, de três obras básicas distintas, convergindo na mesma ideia: a moral ensinada por Jesus é a mais perfeita que há – e é dever de todo espírita verdadeiro tentar segui-la [4]. Neste sentido, sim, o Espiritismo é cristão.
“O ensino dos Espíritos é eminentemente cristão. Apoia-se sobre a imortalidade da alma, as penas e recompensas futuras, o livre-arbítrio do homem e a moral do Cristo. Não é, portanto, antirreligioso” [5]. A proposta do Espiritismo, portanto, não é suplantar a base do ensino cristão, apenas trazer certos mecanismos secundários que explicam eventos aparentemente “inexplicáveis” – como o sofrimento das crianças ou as aptidões inatas.
Fugindo de uma discussão sobre terminologias, o Espiritismo almeja adotar os ensinamentos morais de Cristo, não adentrando nos dogmas. “O Espiritismo é, antes de tudo, uma ciência; não cogita de questões dogmáticas. Ele repousa em princípios independentes das questões dogmáticas” [6].
• Revelação
Ao considerar, corretamente, a moral de Cristo como a mais pura e mais sublime, fica uma pergunta: qual a necessidade do Espiritismo? Afinal, a revelação teria se encerrado em Jesus (ou no texto do Apocalipse). O próprio Catecismo da Igreja Católica diz, no parágrafo 66: “A Economia cristã, portanto, como aliança nova e definitiva, jamais passará, e já não há que esperar nenhuma nova revelação pública antes da gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Jesus mesmo disse que “os céus e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão” [7].
A resposta pode ser dada, primeiro, na continuação do mesmo parágrafo no Catecismo: “Todavia, embora a Revelação esteja terminada, não está explicitada por completo; caberá à fé cristã captar gradualmente todo o seu alcance ao longo dos séculos”. Mas por que será que a revelação não está totalmente explicitada? Jesus já não trouxe tudo?
Ele próprio disse aos seus discípulos: “Eu ainda tenho muitas verdades que desejo vos dizer, mas seria demais para o vosso entendimento neste momento” [8]. Utilizando-me da Catena Áurea (livro no qual São Tomás de Aquino compila comentários de diversos Padres da Igreja e doutores da fé sobre os quatro Evangelhos), lá está escrito, em comentário a este trecho bíblico: “Ele quer dizer que Seus ouvintes ainda não haviam alcançado todas aquelas coisas que, por causa do Seu nome, eles seriam capazes de suportar: assim, revelando coisas menores, Ele adia as maiores para um tempo futuro, coisas que eles não poderiam entender” [9].
Jesus, bem como o comentário à passagem, reconhece que as pessoas de sua época não eram capazes de compreender tudo – o que é completamente natural. Não é esperado que um povo há dois mil anos fosse capaz de apreender toda a complexidade do conhecimento divino [10]. Jesus, o pedagogo por excelência – permita-me este termo –, adaptou sua mensagem para as pessoas da época, ofereceu aquilo que eles seriam capazes de compreender. O erro está em “crer Deus muito pouco sábio para não proporcionar a revelação ao desenvolvimento da inteligência”. Da mesma forma que “não ensinais às crianças o que ensinais aos adultos e não dais ao recém-nascido um alimento que ele não possa digerir. Cada coisa tem seu tempo” [11].
Deus, sendo infinito, usa imagens e analogias para comunicar-se com a mente finita dos seres humanos. Sabendo que Deus acomoda a mensagem às limitações humanas, não seria esperado que a humanidade, progredindo, tenha maiores capacidades de compreensão? Que poderia haver uma outra chave de compreensão que escapou aos homens de dois mil anos atrás, mesmo aos apóstolos? Não há nada de ilógico nisso.
Como exemplo concreto, recorro, novamente, à Bíblia: “E, tomando consigo os doze, disse-lhes: Eis que subimos a Jerusalém, e se cumprirá no Filho do homem tudo o que pelos profetas foi escrito; Pois há de ser entregue aos gentios, e escarnecido, injuriado e cuspido; E, havendo-o açoitado, o matarão; e ao terceiro dia ressuscitará. E eles nada disto entendiam, e esta palavra lhes era encoberta, não percebendo o que se lhes dizia” [12]. É difícil pensar numa forma mais clara para Jesus anunciar aos discípulos o que lhe ocorreria em breve; mesmo assim, eles não compreenderam.
Não seria correto, ao mesmo tempo, concluir que o ensinamento de Jesus está ultrapassado pelo fato de ter sido adaptado a um povo de dois mil anos atrás. Tudo está lá em gérmen, cabendo ser desenvolvido e explicado (como bem colocado no Catecismo § 66). Jesus “falou de tudo, mas em termos mais ou menos implícitos. Para ser apreendido o sentido oculto de algumas palavras suas, mister se fazia que novas ideias e novos conhecimentos lhes trouxessem a chave indispensável, ideias que, porém, não podiam surgir antes que o espírito humano houvesse alcançado um certo grau de madureza. (…) [O Espiritismo] nada ensina em contrário ao que ensinou o Cristo; mas desenvolve, completa e explica, em termos claros e para toda gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica” [13].

Da mesma forma que Jesus disse “Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim abrogar, mas cumprir” [14], o Espiritismo pode dizer “Não venho destruir a lei cristã, mas dar-lhe execução”.
Referências bibliográficas:
[1] A Gênese, Allan Kardec, Primeira Parte, Capítulo I, Item 56.
[2] O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec, Capítulo I, Item 9.
[3] O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, Questão 625.
[4] O Livro dos Médiuns, Allan Kardec, Primeira Parte, Capítulo III, Item 28.
[5] Revista Espírita, Allan Kardec, Novembro de 1858: Pluralidade das existências.
[6] O que é o Espiritismo, Allan Kardec, Capítulo I, Terceiro diálogo.
[7] Evangelho de Mateus, Capítulo 24, Versículo 35.
[8] Evangelho de João, Capítulo 16, Versículo 12.
[9] São Tomás de Aquino, Catena Áurea, Evangelho de João, 16:12, DIDYMUS. (de Sp. Sanct. ii. ult med. inter opera Hieron.).
[10] O Céu e o Inferno, Allan Kardec, Primeira Parte, Capítulo X, Item 3.
[11] O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, Questão 801.
[12] Evangelho de Lucas, Capítulo 18, Versículos 31 a 34.
[13] O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec, Capítulo I, Itens 4 e 7. [14] Evangelho de Mateus, Capítulo 5, Versículo 17.
Caio Almeida
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