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Será mediunidade uma manifestação diabólica?

Segundo O Livro dos Médiuns, a mediunidade é a faculdade da pessoa [médium] que pode servir de intermediária entre os Espíritos e os homens. Simplificando, seria um “contato com os mortos”. Há quem não acredite nesta possibilidade e tente descartar o fenômeno simplesmente afirmando que se trata de uma alucinação, de esquizofrenia – apesar de médiuns terem, comprovadamente, saúde mental igual ou melhor do que a população geral, segundo pesquisas científicas.

Por outro lado, uma crítica comum – vinda de nossos irmãos cristãos de outras vertentes – alega que a mediunidade seria uma manifestação do demônio para enganar e desvirtuar os homens. Mas será que ela se sustenta?

Admitamos, por ora, que são obras do demônio. Seu objetivo é desviar os homens do caminho do bem, afastá-los de Deus. Então por que o demônio incentiva na sua “presa” – nós – a necessidade de rezar a Deus, submeter-se à Sua vontade, renunciar ao mal, praticar a caridade? Por que exalta as delícias da felicidade verdadeira desfrutada pelos Espíritos puros? Por que escancarar as consequências negativas dos vícios e comportamentos contrários às Leis de Deus? Não disse Jesus que se reconhece uma árvore pelos seus frutos (Lc 6:44)?

“Já se viu alguma vez um vendedor gabar a seus clientes a mercadoria do vizinho em detrimento da sua e incitá-los a ir à loja dele? Entretanto, é esse o papel estúpido que se faz o demônio representar. (…) Ora, atribuir ao demônio tão benéfica propaganda e salutar resultado é conferir-lhe diploma de tolo” (CI, cap. X, item 7). Disso só restam duas opções: ou o demônio é um desastrado trabalhando contra seus interesses, ou nem todas as manifestações são obras diabólicas.

Sobre a possibilidade de “conversar com os mortos”, isso aparece claramente no Antigo Testamento, quando o rei Saul, desesperado com a guerra na qual se encontrava, resolve evocar o espírito do profeta Samuel em busca de conselhos; este aparece e eles dialogam (1 Samuel 28:7-19).

Admitamos, por ora, que seja obra do demônio, apesar de o texto bíblico ser muito claro em dizer que se tratava do profeta Samuel. Ou seja, o “pai da mentira” foi tão ardiloso que conseguiu enganar um autor dos textos sagrados a ponto de este escrever tal evento como sendo verídico – a manifestação do falecido Samuel – quando se tratava, na teoria, de uma obra diabólica. Ora, isso é perigoso para as próprias pessoas que creem na autoridade da Bíblia: se o diabo conseguiu enganar perfeitamente um autor dos textos sagrados, o que o impede de ter conseguido novamente tal proeza em várias outras passagens e ensinamentos bíblicos? Se esse fenômeno se produziu uma vez, é possível repetir-se. Quem poderá garantir que o resto dos textos sagrados está isento dessa manipulação diabólica já que o precedente, em tese, foi aberto?

Além disso, afirmar que é obra do diabo foi a mesma coisa que os fariseus fizeram com Jesus há 2 mil anos:

“Mas os fariseus, ouvindo isto, diziam: Este não expulsa os demônios senão por Belzebu, príncipe dos demônios. Jesus, porém, conhecendo os seus pensamentos, disse-lhes: Todo o reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda a cidade, ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá. E, se Satanás expulsa a Satanás, está dividido contra si mesmo; como subsistirá, pois, o seu reino?” (Mt 12:24-26)

Olhando na história, trago dois curiosos exemplos de mediunidade que seriam cômicos caso fossem obras do diabo. Dante Alighieri foi o maior poeta da língua italiana e tido em alta estima [com muita justeza] pelo cristianismo. Após sua morte em 1321, os últimos treze cantos do Paraíso, a parte final da sua magnífica obra Divina Comédia, estavam desaparecidos. Então, a tradição conta que sua filha Antonia sonhou com o pai, no qual ele lhe revelou o local onde os cantos perdidos estavam escondidos. Seguindo as instruções do sonho, encontrou os manuscritos em uma caixa secreta na casa da família em Ravena. Seria curioso se o diabo tivesse a intenção de auxiliar na elaboração de um texto eminentemente cristão, especialmente a belíssima parte sobre o Paraíso.

Como segundo exemplo, trago nada menos que São Tomás de Aquino, tido pela Igreja como “o mais sábio dos santos e o mais santo dos sábios”. Certo dia, após o horário do silêncio em seu mosteiro, o santo estava em sua cela quando, de repente, seu “secretário” o escuta conversando, falando em voz alta. Minutos depois, ao sair do quarto, o secretário lhe pergunta com quem ele conversou. Tomás revela que estava tendo sérias dúvidas em como interpretar determinada passagem do texto de Isaías e, com lágrimas nos olhos, suplica a Deus que o auxiliasse na compreensão. Então, ninguém menos que São Pedro e São Paulo aparecem e explicam-lhe a passagem. Novamente, seria curioso dizer que o diabo conseguiu influenciar o “mais sábio dos santos” e o auxiliou a compreender os textos sagrados. Sem contar os inúmeros outros episódios nos quais o próprio São Tomás teve contato com sua irmã falecida, entre outras pessoas. Todos esses relatos estão na obra “Saint Thomas Aquinas: A Biographical Study of the Angelic Doctor” [São Tomás de Aquino: Um Estudo Biográfico do Doutor Angélico], escrita por um frade.

A conclusão disso tudo é que o demônio não pode estar por trás das manifestações mediúnicas, pelo menos não em todas. Caso fosse, ele estaria fazendo papel de tolo auxiliando na construção do cristianismo.

Caio Silva de Almeida

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